"Anotações soltas sobre a mesa, cinzeiros cheios, copos vazios e este guardanapo de papel onde anotei frases aparentemente sábias sobre o amor e Deus, com uma frase que tenho medo de decifrar e talvez, afinal, diga apenas qualquer coisa simples feito: nada disso existe. E esse nada incluiria o amor e Deus, e também os dragões e todo o resto, visível ou invisível".

Caio F.

O Preço

Olhou preguiçosamente para o despertador que marcava seis horas e vinte minutos da madrugada. Levantou, foi até a cozinha e passou um café fresco. Ao invés de pegar o jornal como de costume, resolveu ligar a tevê no noticiário da manhã. Sentou-se na beira da cama e ali ficou a assistir por alguns minutos. Logo depois, cansou-se de tantos delírios e resolveu arrumar a cama, abrir as janelas, deixar o sol entrar, lavar o rosto, escovar os dentes e dar um rumo na vida.
Como se escovar os dentes e lavar o rosto mudasse algo no reflexo que veria no espelho, jogou a água que julgou bendita na face, e olhou os respingos. Continou a olhar. Nada via de incomum, apenas os respingos. Uma das coisas que gostaria de mudar era sua capacidade de dizer sim e a de não dizer não. O equilíbrio dessas palavras em sua vida não existe.
Ouviu certa vez, que muitos nãos custam um único sim durante uma vida. Achou muito sábio, mas não era o tipo de filosofia que conseguiria se adequar rapidamente. Sempre deixa tudo para depois. Então, que diferença faria esperar calmamente pelo dia em que irá acordar e dizer, 'não. Agora não' em frente aos respingos no espelho? O preço que se paga por um não é tão caro quanto um sim.
Lembrou-se de ter deixado umas gotas de café caírem sobre umas folhas em sua escrivaninha, e pensou, 'mais vale uma escolha mal feita, do que uma escolha não feita'. Estaria disposto a pagar? E pensou: 'tem dias em que é melhor se fechar'.
Fechou todas as cortinas, desligou a tevê, desarrumou a cama, olhou para o relógio que marcava sete horas e vinte minutos e voltou a dormir.

O Acerto

A manhã passou e continuou deitado na cama, largado, internamente clamando por algo que pudesse salvá-lo. Nem sequer conseguiu dormir um pouco mais. Seus olhos não fechavam. Virou de lado e foi cegado pela luz do rádio-relógio que marcava catorze horas e trinta e dois minutos. Achou um disparate seu corpo entregue a tamanho deleite sobre um pecado tão capital como a preguiça. Sentiu uma imensa culpa por achar que ao deitar-se todos os questionamentos iriam para longe.
Cumpriu com o mesmo ritual de antes. Abriu as cortinas, deixou o sol entrar, arrumou a cama, foi ao banheiro lavar a face e olhar novamente os respingos; foi até a cozinha, deu um gole no café amanhecido e lembrou do que sua querida e falecida avó, serena, de cabelos brancos dizia: 'café velho e frio, é como um chute na bunda, meu filho', e sentiu o café descer com desgosto pela garganta. Preparou um pão com manteiga para saciar sua fome por hora, e desanimou quando viu as panelas engorduradas sem lavar na pia. 'Há quantos dias ninguém aparece por aqui?', murmurou.
Sentiu vontade de ouvir Ella. Sempre se sente acolhido quando ouve o som da sua voz. Grande, negra e bela, Ella Fitzgerald. Ligou o toca discos, e enquanto ouvia a melodia, 'how high the moon, there is no moon above when love is far away too, till it comes true, that you love me as I love you...', sentiu saudades de um tempo que não volta mais; mordeu o pão e deu mais um gole no desgostoso café.

O (Des)gosto

O sol mostrava seu brilho como nunca através das janelas. Se prostrou frente à escrivaninha, e viu que os papéis respingados de café ainda estavam lá. Sujos de café e limpos de palavras. Apenas papéis e respingos. Nada de letras, palavras, sintaxes, paráfrases. Nada. Nenhuma de suas anotações estavam lá.
O não e o sim continuavam a vagar por sua cabeça, quando subitamente, dominado por um ímpeto violento, transbordado, jogou a xícara cheia de café contra a parede, como que para descontar . O barulho da xícara quebrando deu-lhe um imenso prazer. Olhou todos aqueles cacos no chão, amassou todos os papéis em cima da mesa. Com as mãos apertando a cabeça como se dela fosse sair algo, passou as mãos pelo rosto e correu para o espelho. Ficou por minutos ali, encarando a si mesmo em silêncio. Abriu a torneira e molhou as mãos. Molhou o rosto também. Secou-se. Não havia nenhum respingo.
Depois de acalmar-se e organizar os monstros, voltou à escrivaninha, sentou-se, pegou um lápis, um papel e começou a escrever desesperadamente, apaixonadamente, sufocadamente. O reflexo do sol batia nos cacos de vidro e Ella sussurrava baixinho: 'I walk the floor and watch the door, and in between I drink, black coffee...'. Os cacos continuaram lá, e em seus pensamentos: "nunca acertei tanto, tanto em acabar brutalmente com um desgosto".

A Recompensa

sábado, 31 de janeiro

Palavras saíam da ponta do lápis levemente dispostas a escrever uma história jamais escrita, como jamais acontecera. 'São as palavras que nos escolhem, não nós que as escolhemos', lembrou. E por um instante sentiu um acolhimento sincero, 'vieram para mim', pensou. Parecia que seus dedos nunca tinham escrito uma palavra que fosse. Escrevia com tanta sede, segurava o lápis com tamanha precisão, que o papel sequer ousou sair do lugar. A respiração ofegante esbanjava desespero, ansiedade, inquietação.
Emoções borbulhavam dentro de si. Os indícios de um arrebatamento emocional continuavam ao chão, refletindo os raios do sol que os iluminavam. Pouco se importava. Continuava a escrever e ignorava tudo ao seu redor. Só o que lhe importava naquele momento era o que sentia. 
Olhou por um instante para o chão, exatamente no momento em que um dos cacos ficou mais iluminado por um dos raios do sol que entravam pela janela, 'uma xícara a mais, a menos, que diferença faz? Nenhuma. Essas coisas que a gente ganha quando casa e ficam aí, pedindo para serem quebradas, bah. A única coisa faltosa é o café. Santo café que me acompanha sempre', resmungou em pensamento.

A Redenção

Ficou sentado ali escrevendo, ofegante, escrevendo, respirando, sentindo, e transpirando, durarante horas a fio. Não olhou que horas eram. Já havia notado que o sol já estava para se por. Sentiu seus músculos doloridos de ficar tanto tempo numa mesma posição. Largou o lápis, empurrou os escritos para o lado e espreguiçou-se. Levou os braços a cima da cabeça, esticou o tronco, estralou os dedos, o pescoço, esticou os braços, e respirou fundo.
Sentiu-se renovado. Ainda estava sobre o efeito das palavras que saíram de dentro. Levantou-se e espreguiçou-se novamente. E como uma redenção, pisou em cima de todos os cacos como se não estivessem lhe cortando. Foi andando em direção à janela e, ao se aproximar, pisou fundo nos cacos, fechou os olhos, e um grito pulou para fora. Respirou fundo.
Debruçado na janela, olhou para baixo e não havia ninguém na rua. Sua visão do décimo quinto andar não era muito favorável ao voyerismo, mas mesmo sob essas condições fez questão de  observar os pontos andantes a baixo.
Sentiu a vida. Encheu o peito de ar. Respirou e inspirou. Tomou fôlego, mergulhou em sua cama. Ficou ali durante minutos olhando para o teto e com os pés machucados para fora da cama. O sangue pingava. Começou a sentir a dor, retorceu os pés, mas não se importou. Ficou ali, quieto, sem nem ao menos lembrar da falta que a voz da Ella fazia. Virou para o lado, acomodou-se nos cobertores, fechou os olhos e dormiu profundamente. Acompanhado da solidão.

Cinzeiros Cheios, Copos Vazios

A caixinha está cheia, transbordando emoções, digamos, embaralhadas: "do que serve tudo isso?", "da onde vem tamanha confusão?", "alguém pode me responder o porquê?". Talvez sejam respostas que nunca cheguem até a mim, mas, se quer saber o que mais me irrita eu responderei que é o tempo que perdemos fazendo coisas que achávamos que realmente eram válidas para algo na vida, e de nada nos serviram.
Superlotação, a ponto de negligenciar tantas coisas, e dentre elas o pagamento ao jornaleiro no domingo, a agenda que ainda não comprei, o filme que ainda não assisti, a palavra que ainda não escrevi, e inclusive a que ainda não falei. Estou tentando arranjar algum jeito de apertar a descarga. Mas como? Concentração, respiração, vai, um, dois, um, dois. Ascende um cigarro, toma um gole, respira.
Tão cheio, a ponto de ao mesmo tempo em que escrevo este texto, penso em milhares de coisas sobre as quais poderia escrever e não cabem aqui. Talvez nunca caberão. Ah! Conflitos, para que tê-los? Para quê, Deus? Dizem que repertório é uma coisa importante -sim, concordo, é-. Mas só o é, se é sabido o que fazer com ele. Achamos que tudo não serviu de nada, mas na verdade não fizemos nada com o tudo, e aí, catapuft. Senhora frustração, muito prazer!
Mais uma vez, cá estou, fazendo nada com o que tenho em mãos. Falo, falo, e não chego a nenhum lugar, lugar nenhum. Talvez eu venha desse lugar, 'lugar nenhum', lugar incomum. Que tipo de pessoa se diverte tomando café e lendo um livro? Hã? Oh, Deus, a que mundo pertenço? Só faz quase quinze dias que não saio de casa, e que uso as mesmas roupas e vejo sempre o mesmo lugar. Repudio quando o meu eu-lírico não tão poético assim, se manifesta no meu lugar.